sábado, 14 de novembro de 2015

Bataclan, refugiados, globalização e tudo isso

O presidente francês classificou os acontecimentos da noite do dia 13 de Novembro como “um acto de guerra”. São isso mesmo, nem mais, nem menos. Estes actos terroristas não são actos contra os regimes democráticos. Mas a resposta dos nossos líderes poderá ser, se a opinião pública se deixar amordaçar um pouco mais para garantir a sua dita segurança. Estes actos terroristas não são actos contra a civilização. Mas a resposta dos nossos líderes poderá ser, se continuar a escalada de guerra em territórios longínquos. A história conhecida dos homens ensina-nos que a civilização está assente na barbárie. Uma não existiria sem a outra. E a nossa não é excepção. São actos bárbaros? São. Os terroristas atiraram indiscriminadamente? Sim. Mas esta barbárie apenas imita a barbárie de bombardeamentos de aviões e drones, que matam indiscriminadamente e são ordenados pelos nossos líderes. São actos de guerra legítimos? De acordo com a convenção de Genebra, ou outras leis que rejam a conduta de guerra, não. Mas na prática, no terreno, sim, são. O terrorismo sempre foi a arma dos beligerantes mais fracos, muitas vezes a única forma de combater um inimigo muito mais forte. Tempos houve em que os nossos antepassados lusitanos, tão glorificados quando nos convém, eram terroristas bárbaros face ao império romano. Ou os angolanos que combatiam no mato nos anos 60, terroristas face ao regime de Salazar, mas mais tarde legitimados pela descolonização. E os exemplos podiam encher páginas. Mas qual a diferença entre estes actos e os do século XXI? Como em quase tudo que se passa no mundo, a explicação passa pela a globalização. Enquanto no passado, os terroristas não tinham outra opção senão fazer a guerra no seu próprio território, hoje é-lhes possível trazer o terror às portas daqueles que, em primeiro lugar, o trouxeram para os seus países. 

Estes actos também não são fruto de fundamentalismo islâmico. Repito, são actos de guerra, perpetrados como retaliação a actos que são cometidos pelos nossos países, a milhares de quilómetros de distância, com o nosso consentimento, implícito ou explícito. Os ideais religiosos ou políticos foram sempre uma capa para esconder a verdadeira razão da guerra: a luta pelo poder e domínio sobre os outros. E as guerras de hoje não são excepção. Durante o período da guerra dita fria, o calor da verdadeira guerra aqueceu grande parte do globo. América do Sul e Central, Ásia e África foram alvo dos interesses dos dois grandes beligerantes, sob a capa do antagonismo dos ideais políticos. Mas após a queda da URSS, tudo ficou mais claro, mais límpido. As guerras que se seguiram, não só as intervenções militares dos EUA e seus aliados, mas também as guerras civis instigadas pelo Ocidente, das quais a guerra na Síria é o exemplo mais flagrante, mostram algo que já se verifica há 500 anos, mas que hoje é mais fácil de se tomar consciência: o mundo ocidental está em guerra com o resto do mundo. O nosso estilo de vida, com todos os seus aspectos positivos, quer materiais, quer institucionais, tem um lado lunar. A nossa sofisticação material e política tem um custo; as nossas democracias são construídas à base do amordaçamento da liberdade de expressão noutros países, os nossos carros andam com combustível que alimenta a pobreza, as nossas roupas de marca são feitas de trabalho infantil e escravo, as nossas cidades são construídas sobre os escombros de regimes ditatoriais. A guerra em Damasco já mata há 5 anos; mas só nos lembramos dela quando vemos as imagens dos bombardeamentos, ou dos cadáveres de refugiados a flutuar no Mediterrâneo. Ficamos chocados quando a guerra chega às ruas de Paris. E fingimos que não temos responsabilidade; somos inocentes; as vítimas de Paris eram inocentes. Não, não eram. Não, não somos. 

Uma das características, talvez a mais central, de um Estado de Direito democrático moderno deverá ser uma opinião pública esclarecida. Só dessa forma é que os regimes democráticos resistirão aos desafios do século XXI, não resvalando para regimes autoritários. Mas as elites governativas não têm interesse numa opinião pública esclarecida. O status quo tem de ser mantido, a todo o custo. Têm de ser as próprias populações a acordar para a realidade, senão acordarão ao som de bombas. Nós, a opinião pública dos países ocidentais, temos de nos confrontar com a realidade exterior aos nossos próprios países, por muito difícil e custoso que isso se venha revelar. Temos de tomar consciência dos actos perpetrados pelos nossos governos no Médio Oriente e em África, e das suas gravosas consequências. Temos de perceber porque milhares de pessoas fogem dessas regiões e se dirigem para os nossos países. 

E depois temos de decidir. Podemos lutar para que os nossos governos mudem, fazendo pressão através do voto, mas não só, para que os interesses económico-financeiros não sejam os únicos a ditar a política externa dos nossos países, e para que o nosso estilo de vida não tenha de ser construído em cima da miséria de outros. Se esta tomada de consciência for feita por iniciativa própria, poderemos poupar a Europa a um prolongamento sem fim do terrorismo no nosso território. Ou, podemos apoiar a política vigente, e passar a encarar o terrorismo como um mal necessário. Assumimos a nossa posição beligerante, do lado daqueles que nos trouxeram até aqui, construímos muros, e reconhecemos que o nosso modo de vida é o bem supremo, lidando bem com o mal-estar dos outros, desde que longe da vista. A opção está nas nossas mãos. Se deixarmos a decisão entregue apenas aos nossos governos, a escolha já foi feita. 

R. entrega uma pizza #à sodacáustica, #à fritei a pipoca e #à incendiário

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