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Desde que Trump, surpreendentemente para muitos, conseguiu a
nomeação republicana para a corrida à Presidência dos EUA, a principal tese
avançada pelos órgãos de comunicação e pelos opinion makers, nacionais e
internacionais, é que Trump não tem qualidades pessoais para ser líder da
(ainda) maior potência mundial. Está mal preparado, não tem experiência
suficiente, não tem conhecimento dos assuntos de Estado, e defende ideias que
são uma ameaça à estabilidade dos EUA e do mundo. No entanto, no último mês,
foi possível ver que a realidade não é bem como a pintam.
Nos passados dias 26 de Setembro, 9 de Outubro e 19 de
Outubro, os dois candidatos enfrentaram-se em debates a dois. Na verdade, o
formato dos debates presidenciais americanos dá pouco espaço ao confronto, privilegiando
a resposta de cada um dos candidatos, no seu tempo, e negligenciando o debate propriamente
dito. A este respeito, Trump pareceu, no mínimo, tão seguro quanto Clinton. Ambos
atacaram os pontos fracos do seu oponente. Tanto um, como outro, demonstraram
ter assuntos cuja discussão os põe desconfortáveis, levando-os a fugir a
respostas directas, e desviando o debate para outras matérias. Repito, ambos.
De um lado, acusações de abuso sexual; do outro, indícios de corrupção na
Fundação Clinton e de má conduta política na questão dos e-mails confidenciais.
É verdade que os debates políticos tradicionalmente não se
baseiam numa análise detalhada ou aprofundada da realidade e do programa dos
candidatos, mas ambos os candidatos não pareceram querer mudar isso. Nos três debates,
Trump conseguiu dizer tantas generalidades e superficialidades quanto Clinton,
aparentando ter o mesmo grau de preparação no que toca aos grande tópicos em
discussão. Quanto ao passado, Clinton acusa Trump de falta de experiência;
Trump diz que Clinton tem muitos anos de experiência governativa, mas comprovadamente
má experiência.
Mas mais importante ainda, todas as opiniões de Trump expressas
nos debates são tão credíveis quanto as de Clinton, sendo que muitas delas
seriam, na realidade, defendidas por líderes europeus do centro-direita. Diferem
na perspectiva de abordagem dos problemas, mas são igualmente verosímeis quanto
as de Clinton. Senão vejamos, concentrando-nos no último debate.
Trump defende o direito ao porte de arma por parte de todos
os cidadãos, algo constitucionalmente previsto na 2ª emenda à Constituição dos
EUA. Clinton defende restrições severas ao porte de armas. Trump é “pró-vida”,
contra a prática de aborto; Clinton defende a escolha da mulher. Ambos prometem
que nomearão Juízes para o Supremo Tribunal partidários das suas ideias.
Trump defende a deportação de emigrantes ilegais condenados
na justiça americana e procedimentos muito mais restringentes à entrada no
país, nomeadamente a construção de um muro na fronteira com o México; Clinton
apoia fronteiras mais flexíveis.
No panorama internacional, Clinton tem uma clara atitude de
confronto com a Rússia, em particular com Putin, enquanto Trump defende uma
estratégia de concertação entre as duas grandes potências. Clinton defende a
manutenção das estruturas da NATO e dos acordos internacionais; Trump advoga
uma reestruturação destas organizações, defendendo que os restantes países
devem contribuir mais do que aquilo que têm feito até agora.
Em relação à situação político-militar no Médio Oriente,
particularmente na Síria, Clinton será, como Presidente, uma seguidora da
doutrina oficial das últimas décadas, no caso, apoiando forças rebeldes na Síria
(incluindo forças turcas e curdas) contra Assad, de forma a promover a mudança
de regime, estratégia que esteve precisamente na origem da guerra civil que
dura há cinco anos. Trump defende prioritariamente o combate ao Daesh, com o
apoio da Rússia e do regime de Assad, e o fim do apoio aos rebeldes, uma vez
que muitos serão tão radicais como o intitulado Estado Islâmico.
Quanto à economia, Trump defende uma menor intervenção do
Estado e a baixa de impostos para os mais ricos, de forma a promover a criação
de empresas e emprego; Clinton defende o contrário, taxando as corporações e os
mais abastados. Trump propõe substituir o plano de saúde ObamaCare, questionando
a sua sustentabilidade financeira. Clinton defende o oposto.
Finalmente, uma questão que se tem levantado ultimamente é a
aceitação, ou não, dos resultados eleitorais por parte de Trump (na hipótese de
ele perder, claro). Para Clinton, contestar resultados eleitorais é uma ameaça
à democracia; para Trump, faz parte do processo democrático (não foi Al Gore, vice-presidente
de Bill Clinton, que contestou o resultado das eleições de 2000?).
Na sua intervenção no segmento final do debate, Clinton
quase disse, letra por letra, o slogan de Trump, make America great again.
Lá no fundo, talvez eles não sejam assim tão diferentes. Ambos querem o mesmo,
mas propõem caminhos diferentes.
A verdade é que, nos três debates, Trump demonstrou não ser o
radical que se pensava e não ser, de todo, uma ameaça ao regime democrático.
Ele é fruto desse mesmo regime. Ele só conseguiu chegar tão longe porque os eleitores
e a estrutura do Partido Republicano assim o quiseram. Porque muitos americanos
revêem-se nas suas posições; porque muitos meios de comunicação gostam do seu estilo;
porque muitas pessoas o vêem como modelo do self made man do sonho
americano. Razões válidas e democráticas.
Se Trump perder, ainda assim conseguiu algo muito
importante. Nunca, nos últimos 50 anos, tantos americanos se recensearam, e
tantos outros se envolveram civicamente na política. E talvez esses mesmos
eleitores possam exigir e controlar o que Clinton fará daqui para a frente. Se
Trump ganhar, o clima de mudança política será o equivalente aos turbulentos
anos 60 do século passado. E sempre que os EUA passaram por uma época de
sobressalto, a história ensina-nos que saíram sempre melhores do que antes. A
independência após a guerra com a Inglaterra, o fim da escravatura após a
guerra civil, o avanço económico, tecnológico e militar após a 2ª guerra mundial, a aparente hegemonia mundial após a queda do Muro de Berlim e o 11 de Setembro. Pode ser
que, afinal, o fenómeno Trump possa vir a transformar-se numa bênção para a democracia americana.