Às
vezes o pizzaiolo falta e eu tenho de ficar no forno. Outras vezes fico ao
balcão. E outras ainda vou entregar ao domicílio. Confesso que esta tarefa é a
que menos me agrada.
Há uns dias atrás tocou-me fazer entregas. Se isso por si
já era suficiente para me deixar aziado a "coisa" piorou
substancialmente quando vi a morada da entrega: a Gaiola dos Loucos, Rua da
Europa, número 28... Ora bolas!
Aziado, agoniado, angustiado e contrariado lá fui eu...
Ainda não tinha tocado à campainha e já se notava a algazarra e confusão lá
dentro. Um dos nossos entregadores (o gajo lê umas coisas e acha-se filósofo)
chama-lhe a Torre de Babel. Eu chamo-lhe... na verdade não lhe chamo nada. Vou tão
agoniado que se abro a boca ainda chamo o Gregório... Mas aquilo parece um
Albergue Espanhol!
A Gaiola dos Loucos é uma residência de estudantes e há lá
gente de todos os lados. Há uns anos atrás era interessante ir lá levar pizzas.
A malta era nova, cheia de ideais, o convívio era são e as diferenças
toleráveis. É claro que havia gente com quem me identificava mais e gente com
quem me identificava menos mas a vida é mesmo assim, certo?
A determinada altura começo a ouvir uns ruídos junto à
porta. Parece-me que arrastam móveis! Muito estranho! Depois ouço os trincos de
segurança... um jogo de chaves a ser usado uma e outra vez... e finalmente a
porta abre-se! Quem me atende são duas miúdas que andam sempre juntas, uma
romena e a outra búlgara. As duas são muito miudinhas, muito mirradinhas... e
dá a sensação que ninguém lhes dá muita atenção... E não vivem lá há muito
tempo. Coitaditas... lá me abrem a porta e eu entro... E percebo que as duas
tinham arrastado uma cómoda enorme e pesada que estava atrás da porta.
Ultimamente andam paranóicos e devem ter medo de alguém,
não sei se do representante do Círculo de Leitores ou das Testemunhas de Jeová.
Até têm uma placa à porta a dizer que neste momento não estão a aceitar mais
ninguém na residência.
Bem... As duas ficam ali paradas a olhar para mim e pela
experiência percebo que vou ter de procurar alguém porque elas não me vão
ajudar. Sabem a cena do filme Sozinho em Casa em que ninguém paga ao desgraçado
do entregador de pizzas? Pois! É isso! Acontece SEMPRE a mesma coisa e é cada
vez pior. Naquela casa já ninguém se entende.
Uma das mais antigas é a alemã. A fulana é alta e
corpulenta, bebe cerveja como se não houvesse amanhã. Esta tem a mania que é
mandona... e na verdade até é! Quer mandar naquela gente toda mas esquece-se que não
manda na residência. E agora estava a mandar toda a gente para a mesa... aos
berros!
Depois há um francês. O tipo é estranho. É um
"tótó"! Anda sempre com uma T-shirt com Liberté, Egalité, Fraternité
escrito... Vai fazendo a vontade à alemã mas pede-lhe que não grite com os
restantes elementos da residência. E fala tão baixinho que dá a sensação que
ninguém lhe liga puto.
Hoje têm visitas, daí uma tão grande quantidade de pizzas
encomendadas. A alemã gosta muito destes convidados... suspeito que estejam
interessados em comprar a residência e ela sabe que se houver negócio vai ser a
administradora. E os convidados quem são? A banca, (alta, magra, cabelo
grisalho e nariz de bruxa), o interesse corporativo (um tonto a definhar numa cadeira de rodas) e o casal Rating (bem
parecidos, bem vestidos, jovens, despachados e arrogantes). Devem ter sido os convidados a
escolher os sabores das pizzas, pelo menos a julgar pelos sabores: três quatro
prestações, quatro malparadas, seis austeras com medidas adicionais e oito
políticas comunitárias.
Há uns quantos elementos da residência que não são muito
bem vistos e não acham grande piada a estes visitantes: o português, a espanhola,
o irlandês e o italiano. Mas a que mais reclama é uma morenaça grega. É a primeira
a dizer que não quer, que não gosta e que não vai comer. Mas acho que no fim
das contas se submete. Ou comes ou passas fome! A estes todos a alemã tem um
asco tremendo. Se pudesse corria com eles da casa mas nunca sem antes os
esmifrar!
Também lá há umas altas
e loiras tão boas como inacessíveis: a sueca, a dinamarquesa e a finlandesa.
Parece-me que já se arrependeram de vir viver na residência mas agora não têm
outro remédio senão ficar.
Para além desta gente
toda há um anão com a mania das grandezas, do Luxemburgo, um gato maltês e um
pastor belga. Há também um holandês para quem estava sempre tudo bem até há pouco
tempo mas que agora se submete à alemã.
Por fim há uns tipos
com ar fascista de cabelo rapado e sempre com má cara. Um húngaro, um checo, um
croata e mais uns quantos de uns países com uns nomes parecidos. Os tipos
parecem saídos do Exterminador Implacável. São todos uns bullys e a alemã gosta
bem deles (assim como das loiras...). Apanho-a sempre a dizer ao francês que
parecem saídos da família dela... Ele bem bufa e reclama entre os dentes mas lá
se cala entre uma fatia de queijo e uma bucha da baguete. Os bullys gostam de
enxotar as pessoas que vêm pedir à porta. Não gostam de ver gente
"estranha" por ali. Estão à pouco tempo na casa e quem os vir há-de julgar que são os porteiros da residência.
Naquela casa há mais
uma figura digna de registo. Um inglês. Tem um ar perdido mas ao mesmo tempo
altivo. Óculos na ponta do nariz, bengalita (mas só para o estilo) e chávena de
chá na mão o tempo inteiro. Às vezes ameaça que se vai embora daquela casa mas por
alguma razão estranha toda a gente o tenta convencer a ficar.
Durante uns tempos os habitantes daquela casa (uns mais do
que outros) achavam que podiam tornar a residência num lugar especial.
Ajudavam-se uns aos outros. Partilhavam tarefas. Recebiam amigos e visitas de
braços abertos. Havia sempre uma cama para quem chegava de novo. As coisas
pareciam funcionar tão bem que havia montes de candidatos a morar lá.
Depois os
habitantes começaram a definir regras. E elas fazem falta, é verdade. Mas há
ali gente que só consegue viver com regras. E começaram a ficar obcecados com
elas. E queriam criar regras para tudo. E depois começaram a pegar e a reclamar
com quem nem sempre cumpria. E de repente as regras eram a razão de ser da
residência. E nessa altura a alemã começou a ter tiques. E a coisa descambou.
Apareceram
aqueles convidados. A querer ganhar dinheiro com a residência. A alemã alinhou
no jogo deles. E eles no jogo da alemã. De há uns tempos para cá a residência
já não é a mesma e afasta-se cada vez mais daquilo que podia ter sido.
O que
me pergunto enquanto estou ali no meio da sala à espera que alguém me pague as
pizzas é: porque raio não saem todos os que não estão lá bem? Como é possível
que ainda haja quem lá queira viver? Porque não fecham as portas a tão
inoportunas visitas? Como foi possível desviarem-se tanto daquilo que foram os
ideais e o potencial de tão grande e única oportunidade? A residência já não é
o que era. A coisa já não flui. Manda mais quem está fora do que quem lá vive.
E é uma pena!
Saí
desta minha nuvem de pensamento quando vi a alemã a caminhar na minha direção…
Foi ela quem veio pagar! Pareceu-me que foi ao bolso do casaco do português ou
do italiano buscar a carteira e tirou o dinheiro necessário e sabem que mais?
Eles viram e não disseram nada.
É assim
a vida na Residência da Gaiola dos Loucos. Cada vez mais insana e sem sentido. E um dia o prédio vem abaixo.
J. entregou uma pizza #à fritei a pipoca #à Arrebentábolha
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